Era uma vez um menino que tinha muitos brinquedos e gostava muito
deles. Passava o dia inteiro armando aquele forte cheio de índios,
arrumando os carrinhos de corrida, enfileirando os bonecos, armando
trenzinhos, desarmando aviõezinhos. Achava muito bonito aquele tanque
cheio de luzes, aquele trenzinho que apitava, aquele avião que fazia
barulho igual a um jato de verdade. Mas o menino tinha uma grande
tristeza em sua vida: Ele sentia uma pena enorme de seus bonecos.
Tinha pena deles não poderem sentir como ele sentia, deles não poderem
amar como ele amava, deles não poderem sorrir como ele sorria, deles
não poderem perder seus olhos na imensidão do céu azul, demorar-se
olhando aquela estrela que piscava lá longe, escutar aquela música
bonita que parecia vir do Nada, entrar por seus ouvidos e tomar conta
de todo o seu ser. O menino tinha muita pena de seus bonecos e tinha
uma vontade enorme de fazer alguma coisa por eles, de fazer com que
seus bonecos um dia fossem gente também.
Como não achava uma solução para o problema, voltava a desarmar seus
aviõezinhos, a arrumar seus carrinhos de corrida, a ligar o botão do
tanque para que ele piscasse suas luzes. Mas enquanto seus aviões e
carrinhos corriam no seu quarto de um lado para o outro, sua pequena
cabeça apenas pensava em seus amigos, seus bonecos, sentados, olhando
inexpressivos, sem sentirem nada.
Um dia o menino dormiu. Dormiu e sonhou. Sonhou que se projetava na
imensidão negra do espaço e que flutuava no nada, entre aqueles
milhares e milhares de pontos de luz e, em sua volta, milhões e
milhões de galáxias imponentes caminhavam lentamente numa espiral
gigantesca. A sensação maravilhosa de habitar o espaço começou a
impregnar-se em todo o seu ser e o menino flutuava entre as estrelas,
vagava pelo espaço infinito. Um amor intenso oprimia-lhe docemente o
peito, e crescia cada vez mais, e esvaía-se de seu coração,
polvilhando o negro do espaço com uma esteira de milhares e milhares
de partículas de luz. Olhou aquela pequena galáxia, maravilhado.
Pontos luminosos cintilavam, ariscos. Outros, maiores, brilhavam com
uma luz intensa, majestosa. Minúsculos planetas giravam em torno de
seus sóis. Súbitos clarões riscavam entre as luzes e desapareciam logo
depois, como pequenas estrelas fugazes brincando na imensidão. E então
o menino teve vontade de habitar aquele mundo criado pela intensidade
de um amor imenso. E sua consciência projetou-se naquelas estrelas e o
pequeno universo palpitou, pleno de vida. O menino sorriu ao perceber
que, naquele pequeno mundo criado por seu amor, também poderia haver
vida. E, aos poucos, aqueles milhares de pequeninos pontos de luz
foram se chegando mais perto uns dos outros e tomaram uma imensa forma
oval. O menino tornou a sorrir. Que beleza! Aproximou-se mais, e numa
das pontas daquela galáxia que seu amor criara, viu, entre outros, um
pequeno sistema muito bonito, uma porção de planetas girando em torno
de seu sol. Aproximou-se, curioso, de um daqueles pequenos planetas.
Era um lugar ainda muito árido, uma paisagem sem vegetais, somente
pedras. O menino sentiu que naquele planeta talvez ainda se passassem
milênios antes de haver vida animal. Foi para outro planeta. Este era
muito bonito, tinha dois anéis enormes em volta de si, e possuía uma
paisagem estranha, agreste, embora bela.
E assim, o menino foi percorrendo alguns dos planetas daquele sistema
tão bonito, perdido no canto daquela galáxia que seu amor criara.
E então, o menino viu um pequeno planeta azul. Aproximou-se dele, e já
de longe viu que ele tinha água, e verde. Animou-se. Deveria encontrar
vida naquele lugar. Chegou bem perto, e desceu naquele pequeno
planeta.
O menino viu, com um espanto enorme, os habitantes daquele lugar. Eram
todos velhos conhecidos seus. Lá estava o tanque cheio de luzes e o
aviãozinho que fazia barulho igual a um jato de verdade. E aquele
forte apache, cheio de índios e soldados sempre brigando. O menino
sentiu-se muito feliz. Quem sabe se agora ele poderia encontrar uma
maneira de fazer com que seus amiguinhos virassem gente? Gente igual a
ele, gente que pudesse sorrir, sentir, amar, viajar pelas estrelas,
olhar o nascer do sol e sentir-se uma parte daquele sol. Quem sabe,
talvez agora eles pudessem entender sua linguagem...
Aproximou-se de um espantalho de braços abertos e tentou falar com
ele, mas o espantalho continuou impassível, parecia não vê-lo.
Aproximou-se de uma bonequinha, mas ela também não o percebeu. O
menino ficou muito triste. Ele não encontrava um meio de poder se
comunicar com os bonecos. Como poderia ele fazer para que os bonecos
compreendessem sua linguagem?
Foi então que o menino viu, sentado num cantinho, aquele soldadinho
muito amigo seu, e teve uma idéia: Se ele pudesse habitar dentro do
corpo do soldado e falar através de seus lábios aos outros brinquedos,
quem sabe se os outros o entenderiam? E sua consciência projetou-se
para o interior daquele boneco.
O menino sentiu-se um pouco preso, tolhido dentro do brinquedo, e viu
como era engraçado ser boneco. Levantou-se e aproximou-se do forte. Um
oficial e um índio brigavam numa luta aparentemente sem fim.
Aproximou-se do índio.
- Por que vocês brigam tanto? - perguntou - Será que vocês não podem
sentir amor um pelo outro? Vocês têm que aprender a pensar, a olhar
para dentro de vocês mesmos e descobrir que vocês podem amar.
O índio olhou, indignado, para o soldado que lhe falava.
- Você não vê que estou lutando e não posso me distrair?
O soldado, muito triste, continuou sua caminhada. Tornou a procurar o
espantalho. Desta vez, o espantalho olhou para ele. Afinal, de uma
maneira ou de outra, ele estava podendo se fazer compreender. Olhou
para o espantalho e disse:
- Eu gostaria de lhe ensinar a ser gente. Será que você gostaria?
O espantalho olhou-o, desconfiado.
- Para que? De que adianta ser gente?
O soldado respondeu:
- Gente ama, gente ri, gente sente, gente existe. E é tão fácil ser
gente. Tente procurar o silêncio no interior de sua alma. Volte os
olhos para sua mente e fique passivo. Harmonize-se com seu interior. E
então, de dentro de seu silêncio, uma voz falará com você, responderá
a suas perguntas e chamará você para o seio do Universo.
O espantalho coçou a cabeça e olhou para o soldado.
- Olhe, soldado, você está falando umas coisas muito bonitas, mas eu
não quero saber disto, não. De que me adianta olhar para dentro de
mim? O que é que eu vou encontrar lá dentro? Não vou encontrar nada!
Tudo o que eu quero está do lado de fora. E você sabe o que eu quero?
Quero uma porção de moedas de ouro, para poder comprar tudo, tudo no
mundo. De que adianta olhar para dentro de mim? Não vou ver nada lá
dentro. Dentro de mim não tem dinheiro!
O soldado suspirou. É, a coisa estava ficando mais difícil do que ele
pensava... Mas tentou ainda convencer o espantalho:
- No seu interior, você não encontrará dinheiro, mas receberá um cetro
e uma coroa. Porque lá você será rei. Reinará sobre você mesmo, pois é
dentro de você que encontrará seus súditos mais fiéis, que, contudo,
outrora governaram sobre sua fraqueza. E eles lhe darão um tesouro
muito mais rico do que aquele que você pretende. Eles lhe darão a
chave da Vida Universal!
O espantalho sorriu.
- Ora essa, e de que adianta reinar sobre mim mesmo? Você está me
oferecendo um reinado sem glórias. Não, eu quero muito ouro, muito
dinheiro! E isso eu não vou encontrar dentro de mim mesmo. Que
bobagem! E agora saia, saia que eu estou muito ocupado. Tenho que
continuar procurando...
O soldado continuou sua caminhada, triste, desiludido. Ele tinha tanta
vontade de fazer com que aqueles bonecos virassem gente, mas parece
que eles não queriam. Parece que eles preferiam sua vida escura, sem
objetivo, parece que eles não queriam nem ao menos conhecer a grandeza
do Universo, a maravilha que é viver uma vida universal. E o menino
sentou seu corpo de soldado numa pedra à beira da estrada. A linda
boneca aproximou-se dele e sentou-se a seu lado.
- Alô, soldado! Eu já ouvi dizer que você hoje acordou com umas idéias
diferentes na cabeça. O espantalho me disse que você andou lhe falando
de um mundo diferente, um mundo que existe dentro da gente. O índio
está muito zangado com você. Disse que você atrapalhou a guerra dele.
Mas que mundo é esse? Fale-me um pouco sobre ele, soldado...
O soldado suspirou.
- É... Eu gostaria de ensinar a vocês a ser gente, gostaria de ensinar
como sentir, como amar, como sorrir, como ter uma consciência que pode
se projetar no espaço e comungar com toda a consciência do Universo.
Mas para que isto aconteça, há um caminho a ser trilhado. Eu quero
ensinar isto a vocês, mas ninguém quer me ouvir...
A boneca franziu as sobrancelhas e pensou um pouco.
- Fale-me deste caminho... Eu nunca ouvi falar nisso. Explique-me como ele
é...
E o soldado disse:
- É um caminho muito longo o que leva ao seu interior. Um dia, você
ouvirá uma voz, e essa voz chamará dentro de você, essa voz chamará
por você. Verá então que o caminho que vem trilhando, que o caminho
que leva ao sol, é o mesmo que vai para o seu interior, à voz que
chama em você, à voz que chama por você. Mas não espere por ninguém
para prosseguir na sua jornada. Siga em frente, pois existe nela um
trecho que terá que atravessar sozinha. E mesmo que esteja rodeada de
amigos, na verdade estará só. Não encontrará quem lhe ajude, pois
ninguém poderá fazer nada por você e, mesmo que ouçam seu chamado, não
poderão lhe atender. E então, terá que descobrir o que é real dentro
de você, se quiser que suas perguntas sejam respondidas. Terá que
ouvir a voz de sua consciência, pois só ela lhe falará, e terá que
olhar para o seu interior, pois é somente lá que encontrará a Vida
Universal.
A bonequinha pensou um pouco.
- É, soldado... Você disse umas coisas muito bonitas, eu acho que
entendi direito... mas é um pouco difícil fazer isso. A gente pode
tentar, não custa. Mas eu nasci boneca, eu não sei o que é ser gente.
E o soldado respondeu:
- Ser gente é amar com uma intensidade tão grande que se chegue a
sentir que se é o próprio Amor. Ser gente é olhar o nascer do sol no
horizonte e sentir que ele é o reflexo do Sol que nasce no coração.
Ser gente é não se sentir escravizado aos limites da matéria. Ser
gente é olhar para o espaço infinito e sentir que seu lugar é ali, e é
fechar os olhos e sentir sua consciência vagando pelo espaço, presente
em cada estrela do Universo, em cada lugar de todos os mundos. Ser
gente é ter vontade de que todos sejam gente também, e ao mesmo tempo,
ser gente é não ter mais vontade, e ser gente é ser a própria Vontade
Universal. Ser gente é se esquecer de tudo o que já se sabe, é não
saber mais nada e tornar-se apenas um veículo para o Conhecimento
Universal. Ser gente é não precisar mais julgar. Ser gente é não
precisar mais agradecer. Ser gente é não precisar mais procurar. Ser
gente é apenas existir no coração de todo o Universo!
A boneca quedou-se por instantes, pensativa, e depois disse:
- É, soldado, isso tudo é uma beleza, mas eu não sei se conseguiria
jamais ser gente. Eu sinto que falta alguma coisa dentro de mim, mas
eu não sei o que é; alguma coisa que me faça sentir tudo isso que você
disse, que me faça existir da maneira como você falou.
E o soldado respondeu:
- Nada lhe falta, boneca. E o que existe em seu interior, eu estou
tentando despertar. Tento despertar dentro de todos vocês, mas parece
que ninguém entende o que eu quero...
O soldado não desistiu. Continuou por muito tempo a falar aos
brinquedos. Falava de Amor, falava de um mundo no interior deles
mesmos, falava de como alcançar suas consciências e de como ingressar
na Consciência Universal. Alguns escutavam, um pouco interessados, mas
logo depois esqueciam suas palavras e continuavam na sua vida de
sempre. Outros nem ao menos paravam para escutar. E outros ainda
achavam que a conversa do soldado os estava perturbando. E, um dia, o
soldado parou. Parou, olhou para o céu, para o sol que brilhava e
pensou:
- Acho que já fiz tudo o que tinha para fazer. Já dei o meu recado. Os
que puderam ouvir, ouviram. Os que puderam entender, entenderam. E
agora, depende somente deles. Eu já ensinei o caminho. Se eles
quiserem, um dia poderão vir a ser gente. Eu não tenho mais nada a
fazer aqui.
E o soldado sentiu uma doce paz invadir todo o seu ser. Reuniu, então,
alguns brinquedos e disse:
- Chegou a hora de eu me despedir de vocês. Eu não vou embora, apenas
não vou mais lhes falar disso tudo que lhes falei até agora. Vou
voltar a ser como era antes. Apenas um soldado, num cantinho de um
quarto de brinquedos.
Nisto, uma porção de brinquedos, índios, soldados, apareceram correndo
numa cavalgada louca. Estavam furiosos.
- Lá está ele, lá está o soldado! Ele tem que ser destruído! Ele está
ameaçando a paz entre os brinquedos! Ele veio nos falar de coisas
estranhas, e alguns lhe deram ouvidos. A paz entre os brinquedos está
ameaçada por este soldado! Ele tem que ser destruído!
Os brinquedos amigos e companheiros do soldadinho afastaram-se,
assustados, ante a fúria avassaladora dos outros brinquedos, e o
soldado viu-se cercado pelos brinquedos furiosos. De repente, uma
lança cravou-se em seu peito e ele caiu, ferido.
O menino sentiu-se arrancado de dentro de seu corpo e, pairando no
espaço, viu o pobre soldadinho caído e a bonequinha amiga cuidando de
suas feridas. Em breve estaria curado, mas seria apenas um soldadinho
num quarto de brinquedos.
O menino sentiu novamente sua consciência subir ao negro do Nada
imenso e viu-se flutuando entre aqueles milhares e milhares de pontos
de luz no Universo infinito. Subitamente, foi arrastado num turbilhão
e abriu os olhos. O sonho acabara.
Sentou-se e olhou em volta, ainda tonto. Ora, afinal, aquilo não
passara de um sonho. Levantou-se e dirigiu-se ao quarto de brinquedos.
Tudo estava como antes. O forte apache com seus soldados e índios, a
bonequinha com aquele olhar indiferente, o espantalho de braços
abertos com um sorriso cravado no rosto inexpressivo.
- É... - pensou o menino - eu acho que mesmo em sonhos é impossível
fazer com que os bonecos virem gente.
E percebeu, sentado num canto, o seu amigo soldado, que durante todo
aquele longo sonho servira de abrigo para sua alma. Estranho... havia,
no entanto, algo diferente em seu rosto. Aproximou-se e viu, com
grande surpresa, escorrer pelo rosto do soldado, uma lágrima de
verdade.
Amor, Paz e Luz.
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