quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O TESTAMENTO DE UM MENDIGO

Agora, no fim da vida,

como mendigo que sou,

me sinto preocupado,

intrigado e,

num momento

me pergunto,

embaraçado,

se faço ou não

testamento.

Não tendo,

como não tenho

e nunca tive ninguém,

pra quem é que eu

vou deixar

tudo que eu tenho:

Pra quem é que vou deixar,

Os meus bens?


se fizer um testamento,
minhas calças remendadas,
meu céu, minhas estrelas,
que não me canso de vê-las
quando ao relento deitado,
deixo o olhar perdido,
distante, no firmamento?
Se eu fizer um testamento

pra quem é que vou deixar

minha camisa rasgada,

as águas dos rios, dos lagos,

águas correntes, paradas,

onde, às vezes,

tomo banho?


Pra quem é que vou deixar,
se eu fizer um testamento,
os meus bandos de pardais
que, ao entardecer,
nas árvores, brincando de esconde-esconde,
procuram se divertir?
Pra quem é que eu vou deixar

estas folhas de jornais

que uso para me cobrir?

Pra quem é que vou deixar,

se fizer um testamento,

vaga-lumes que, em rebanhos,

cercam meu corpo de noite,

quando o verão é chegado?

Se eu fizer um

testamento

pra quem vou deixar,

mendigo assim como sou,

todo o ouro que me dá

o sol que vejo nascer

quando acordo na

alvorada?

O sol que seca

meu corpo

que o orvalho da

madrugada

com sua carícia

molhou?

Se eu fizer um testamento,
pra quem eu vou deixar,
meu chapéu todo amassado,
onde escuto o tilintar
das moedas que me dão,
os que têm a alma boa,
os que têm bom coração?
E, antes que a vida me largue,
pra quem é que eu vou deixar,
o grande estoque que tenho
das palavras "Deus lhe pague"?
Se eu fizer um testamento,

pra quem é que vou deixar

minhas sandálias furadas,

que pisaram mil caminhos,

cheias de pó das estradas,

estradas por onde andei

em andanças vagabundas?

Pra quem é que eu

vou deixar,

se fizer um testamento,

todas as folhas de outono

que, trazidas pelo vento,

vêm meus pés atapetar?

Pra quem eu vou deixar

minhas saudades

profundas

dos sonhos que

não sonhei!


Se eu fizer um testamento,
pra quem é que vou deixar,
meu cajado, meu farnel,
e a marca deste beijo
que uma criança deixou
em meu rosto perguntando
se eu era Papai Noel?
Pra quem é que eu vou deixar,
se fizer um testamento,
este pedaço de trapo
que no lixo eu encontrei
e que transformei em lenço
para enxugar minhas lágrimas,
quando fingi que chorei?
Pra quem eu vou deixar,

se fizer um testamento,

os bancos dos meus jardins,

onde durmo e onde acordo,

entre rosas e jasmins?

Pra quem é que vou deixar,

todos os raios de luar

que beijam minhas mãos

quando, num canto de rua,

eu as ergo em oração?

Se eu fizer um

testamento...

Testamento não farei!

Sem nenhum papel

passado,

que papéis eu não ligo,

agora estou resolvido:

O que tenho deixarei,

na situação em que estou,

pra qualquer outro

mendigo,

rogando a Deus

que o faça,

depois que eu

tiver morrido,

ser tão feliz

quanto eu sou.

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