sexta-feira, 28 de agosto de 2009

À espera de uma paixão

Estão casados há muito tempo,

mas o que é muito tempo?

Talvez um tempo que ultrapassou a excitação

do desconhecimento mútuo,

a alegre descoberta de afinidades,

o êxtase diante do corpo alheio:

agora já possuem todas as informações,

o dossiê completo um do outro,

com seus defeitos e virtudes. Aparentemente,

nada mais há a descobrir. Dão-se bem,

conversam com facilidade, riem juntos ainda,

mas nada os diferencia de um bom casal de amigos.

O que talvez seja uma trégua mais que bem-vinda,

se o objetivo for este, a paz conjugal,

nenhum grilo falante sussurrando no ouvido esquerdo:

“é isso mesmo que você quer pro resto da vida?”

Se, ao invés de sim, a resposta for não,

não é isso que quero pro resto da vida,

não é um amigo dormindo na mesma cama

com sua tosse e seu hálito,

com suas manias diárias

e seu comportamento previsível, não,

não é isto que quero pro resto da vida,

um bom-dia num tom de voz mais que conhecido,

um boa-noite num bocejo,

todos os dias do calendário vividos

como se cumprissem uma agenda pré-programada,

tudo igual e tudo correto,

sem calafrios e sem dúvidas,

sem medo e sem assombros,

sem qualquer sobressalto,

se a resposta for não, não é isso que quero,

então por que continuar?

Segundo Fabricio Carpinejar, grande poeta,

a vida não é continuar, a vida é começar.

Tive a honra de ler em primeira mão,

antes de ser lançado, o primeiro livro de crônicas do Fabricio,

“O amor esquece de começar”.

Nele, Fabricio cita, em determinado momento,

a secreta aflição daqueles que não se separam

enquanto não surgir uma paixão

com a qual possam dividir a culpa da fuga.

Tocou num ponto nevrálgico.

Não são dois nem três,

são milhares de homens e mulheres

dizendo que estão bem,

que seu casamento é satisfatório,

mas que se surgisse uma paixão,

aí o chão poderia afundar, aí as paredes cairiam,

nem os filhos serviriam de âncora,

a cancela abriria e nenhum caminho de volta seria possível:

iriam em frente, atenderiam o chamado do amor.

Se uma paixão acontecesse, tudo ficaria explicado,

ninguém os condenaria.

Se uma paixão descesse do céu,

aí é porque estava escrito,

aí se justificaria qualquer insanidade,

ah, se uma paixão aterrissasse aqui na palma da mão,

tudo estaria solucionado.

Mas a paixão não acontece, não aterrissa,

não toca a campainha,

não quer incomodar a família tão ocupada

em ver televisão e comer a pizza de domingo,

todos presos ao relógio, tic-tac,

o tempo se repetindo metodicamente.

A paixão, do lado de fora da casa, não entra, não disca,

não bate à porta, aguarda sua hora, que não chega,

porque a saída do dono demora.

Por outro lado, não saem pra rua esposas e maridos

que têm uma vida já bem ensaiada,

a troco de quê trocá-la por um ponto de interrogação,

uma espera, uma tentativa?

Mas se a paixão arrombasse a porta,

seria outra história.

Não são dois nem três, são quinhentos,

são milhões à espera de um rapto, de um seqüestro,

de qualquer coisa que lhes absolva por antecipação:

“não tive como negar, foi uma paixão, um arrebatamento,

fui engolida por uma emoção nova, só por isso eu fui,

só por isso eu me permiti”.

Sem este álibi, quem se atreve?

A vida não é continuar, a vida é começar.

Sem o empurrãozinho de um amor novo,

sem este atordoamento emocional que torna a todos vítima,

ou ao menos cúmplices do irracional,

vamos ficando, vamos ficando.

Há que se ter muita coragem para encarar

a própria verdade sem um bom discurso de defesa.

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