sexta-feira, 2 de abril de 2010

Judas Iscariotes e São Pedro

Judas Iscariotes e São Pedro Revista Catolicismo
Judas não se tornou Apóstolo por vontade própria, mas pela Vontade de Cristo: "Não fui Eu que vos escolhi a vós doze? No entanto, um de vós é um demônio" (Jo 6, 70).



A prisão de Cristo



— Duccio di Buoninsegna (1308-11), Museu da Obra, Catedral de Siena (Itália)
Caiu-me recentemente nas mãos um opúsculo intitulado Judas Iscariotes1. O personagem é muito conhecido e dispensa apresentações. A Semana Santa é a ocasião ideal para meditar sobre sua infame traição.
Pode ser que o leitor já se tenha deparado com algum Judas pelo caminho, ainda que revestido de outro nome. O caráter do traidor, porém, é sempre o mesmo, e a descrição desse caráter é que torna atraente o opúsculo que li e que desejo pôr em comum com o leitor. O contraste com o Iscariotes põe em realce também o modo de agir infinitamente santo de Nosso Senhor Jesus Cristo, contendo mistérios insondáveis para nós, criaturas de inteligência limitada. Feitas essas rápidas considerações, passo diretamente às citações2.
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A fé e o afeto de Judas por Cristo eram, no começo, nobres e dignos. Também Judas se sentiu, então, entusiasmado por Cristo. Muitos doentes e possessos foram curados por ele, e muitas aldeias da Galiléia e da Judéia receberam dele as primeiras noções sobre Jesus.
É possível até que o Mestre tenha colocado Judas acima de alguns dos Doze, pois, segundo o testemunho do Evangelho, confiou-lhe o importante cargo de administrador da bolsa comum (cfr. Jo 12, 6). É provável que, por essa razão, alguns dentre os Apóstolos se sentissem preteridos.
Se não era mau por ocasião da sua vocação, deve ter-se tornado mau — quem seria capaz de crê-lo! — na companhia de Jesus. E é isto o que mais nos assombra: que um homem tenha podido fazer-se um demônio junto do próprio Cristo! No momento em que decide trair Cristo e no momento em que leva a cabo a traição, em ambas as vezes os Evangelhos dizem que Satanás entrou nele (cfr. Lc 22, 3 e Jo 13, 27). Quem abandona as alturas, como o Iscariote, cai pelo seu próprio peso nos mais profundos abismos.

Santa Maria Madalena — Autor anônimo, séc. XVIII, Mosteiro de Santa Clara, Quito (Equador)



Judas, o egocêntrico



O poder das trevas aliou-se, portanto, a Judas e serviu-se desse infeliz para levar a cabo um objetivo que excede em vileza toda a miséria humana; porque há pecados que não podem ser cometidos a não ser sob o influxo do inferno.
Como explicar essa inaudita transformação? Ninguém se torna amigo fiel ou traidor de Cristo de uma hora para a outra. Judas perdeu-se por se ter encerrado obstinadamente no seu próprio eu. Nada estava acima dos seus próprios pensamentos egoístas, e semelhante atitude era já uma traição ao Senhor, muito antes de se concretizar naquela venda infame.
O Senhor [vendo que muitos se afastavam dEle, após ter anunciado a Eucaristia] quis também colocar os Doze perante o dilema: Quereis vós também retirar-vos? Pedro exclamou, respondendo com comovida confiança: Senhor, a quem iríamos? Só Tu tens palavras de vida eterna. Judas, pelo contrário, remoeu-se no seu íntimo, sem no entanto se atrever a recriminar Jesus por ter renunciado ao reino [temporal] e destruído com essas palavras todos os sonhos de poder e de glória que o Apóstolo havia forjado para si mesmo.

Judas ficou desiludido.




Essa permanência mal-intencionada [junto a Jesus] foi o começo da sua traição. Durante todo um ano, equilibrou-se nessa atitude perigosa e cada vez mais instável, compreendendo com clareza crescente que o Senhor não corresponderia às suas ambições terrenas.

A Última Ceia — Frans Pourbus II

Judas, o ressentido




Com um ressentimento cada vez mais infeccionado contra o Senhor, foi dando voltas ao seu plano diabólico, até colocar-se a si mesmo numa posição de ilicitude, e ao Mestre num plano de ilegalidade e de culpa.
O Mestre era bom; mais ainda, mostrava-lhe um grande afeto. Era impossível que não tivesse notado a terrível perturbação de que o seu Apóstolo padecia havia cerca de um ano, mas continuava a tratá-lo da mesma maneira: o seu olhar procurava-o amorosamente, como sempre, e, quando lhe pronunciava o nome, a sua voz continuava cálida e amável. Não quisera trazer a público as fraudes perpetradas por ele contra a bolsa comum. Quando Tiago e João tinham querido falar disso com o Mestre, Cristo fizera-os calar e não quisera revogar a confiança que depositava no ladrão.
[Quando Judas criticou Madalena, por estar ungindo os pés de Jesus com um bálsamo precioso] o Senhor replicara: Por que vos escandalizais desta mulher? Ela fez uma boa obra comigo (Mc 14, 7). Judas não pôde resistir a essa repreensão em público e, diabolicamente ferido, aproveitou o pretexto desse "esbanjamento reprovável" para enfim levar a cabo o que por tanto tempo deixara amadurecer no seu íntimo.

A Traição de Judas

— Duccio di Buoninsegna (1308-11), Museu da Obra, Catedral de Siena (Itália)
Judas, o insolente



Os príncipes dos sacerdotes, tomados de assombro, satisfação e júbilo, não regatearam quando um dos Doze — um dos Doze! — se apresentou diante deles com a proposta por que tanto tinham esperado. Trinta siclos de prata! Judas não tinha outra coisa a fazer senão indicar aos inimigos de Jesus o tempo e o lugar em que o Mestre se encontraria sozinho e isolado da multidão. Vendeu o Mestre muito abaixo do preço de um escravo!
[Na Santa Ceia, Nosso Senhor anuncia a traição. São João pergunta: Quem é? Jesus responde: É aquele a quem eu der o bocado que vou molhar. E, molhando o bocado, tomou-o e deu-o a Judas Iscariotes (cfr. Jo 13, 21-30)].
Como são admiráveis as disposições do Senhor! Aquele pedaço de pão oferecido a um comensal era tão comum nos banquetes, que não podia chamar a atenção; pelo contrário, era uma manifestação de afeto para com um amigo. Cristo não atraiçoa nem mesmo aquele que o atraiçoa. Não lança contra ele nenhuma imprecação, como as que tinha proferido dois dias antes no Templo contra os seus inimigos, nem o entrega ao furor dos outros Apóstolos, seus companheiros.
A insolência de Judas [vai ao ponto de perguntar] Porventura sou eu, Rabi? (Mt 26, 25). Cristo olhou-o como só Deus pode olhar, e respondeu-lhe serenamente: Tu o disseste. Todo esse diálogo entre Jesus, João e Judas passou despercebido dos convivas, ou pelo menos não foi compreendido por eles.
Judas, o apóstata traidor
Desiludido com Jesus, afagado pelos inimigos deste, ferido por uma repreensão e por fim desmascarado, Judas foi-se afundando cada vez mais no abismo, até tornar quase impossível o arrependimento.
O pecado do traidor chegou ao auge quando Judas atravessou a noite amena e alegre da Páscoa, docemente iluminada pela lua cheia, à frente de uma grande multidão, armada de espadas e varapaus (Mt 26, 47). Lucas observa que Judas os precedia (Lc 22, 47): a um apóstolo convertido em apóstata, tudo lhe parece pouco para demonstrar o seu novo ardor.
Logo que chegou, aproximando-se dEle, saudou-o dizendo-lhe: "Mestre!" E beijou-o (Mc 14, 44 e ss.; Mt 26, 48 e ss.). Nele, Cristo experimentou toda a vileza de que é capaz a alma humana; no fundo daquelas trevas [da alma de Judas], vê rompido o selo que trazia o Nome do Senhor, porque nenhum apóstata é capaz de desarraigar completamente esse Nome que, desde o momento do seu Batismo, traz gravado na alma para sempre.
Aproximou o seu rosto do traidor, do infame, e trocou com ele o beijo da paz. Após uns instantes de silêncio, disse-lhe: Amigo, a que vieste? E depois, como se reprimisse um soluço: Judas, com um beijo entregas o Filho do homem? (Mt 26, 50; Lc 22, 48).
[Já profetizara o Salmista:] Se a ofensa viesse de um inimigo, Eu a teria suportado; se a agressão partisse de quem me odeia, dele me teria escondido. Mas tu, meu companheiro, meu amigo íntimo, que te sentavas à minha mesa e comias comigo doces manjares! (Sl 54, 13-15). Mas tu...!
Mas ai daquele por quem o Filho do Homem será entregue! Melhor lhe fora a esse homem não ter nascido (Mc 14, 21).
1.Otto Hophan, Die Apostel Judas Ischarioth, tradução de Roberto Vidal da Silva Martins, Editora Quadrante, São Paulo, 1996, 56 páginas. O opúsculo em português contém também uma interessante comparação entre Judas e São Pedro, que comentaremos num próximo artigo.
2.Dispensamos as aspas de praxe, pois todos os textos a seguir são do autor do opúsculo.



Judas e São Pedro




A Última Ceia — Perea Master
Em artigo anterior reproduzimos trechos de um atraente estudo1 sobre o caráter do traidor Judas Iscariotes. O mesmo opúsculo em português traz também, como apêndice, uma elucidativa comparação entre o pecado de Judas e o de São Pedro2, que nos pareceu interessante levar ao conhecimento do leitor, através dos trechos que abaixo reproduzimos.
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A queda de Judas representa para nós uma advertência. Causa vertigem pensar que um homem bom, escolhido e preparado por Deus para realizar uma grande missão, um homem que conviveu intimamente com o próprio Jesus, e que tinha todas as condições para ser fiel até o fim e muito santo, tenha caído tão fundo.
Essa advertência torna-se ainda mais forte, se nos lembrarmos de que não foi só Judas que traiu. Os outros Apóstolos também traíram o Senhor, embora de outro modo, e até o próprio Pedro, o Príncipe dos Apóstolos, traiu Cristo. Ele que tinha a missão de ser a rocha incomovível sobre a qual se deveria edificar a Igreja ao longo dos séculos, negou covardemente o Senhor.
Judas e Pedro. Duas histórias que nos colocam diante do mistério do mal, dos abismos de maldade que existem no coração de todo ser humano.


A traição de Judas

No início, Judas seguia Jesus com retidão. Havia na sua alma, como na dos outros Apóstolos, ambições humanas alheias à missão de Cristo e interesses pessoais mesquinhos, mas estavam num segundo plano; o que importava acima de tudo era colaborar com o Senhor.
No entanto, com o passar do tempo, essa situação foi-se invertendo: as ambições pessoais de Judas, não devidamente subjugadas à medida que ‘erguiam a cabeça', foram pouco a pouco ganhando terreno até que, em dado momento, o Apóstolo percebeu com nitidez que a proposta de Jesus não se coadunava em absoluto com elas. Então, em lugar de retificá-las, preferiu mantê-las e colocá-las em primeiro lugar na sua vida.
A partir daí foi-se desenvolvendo em sua alma um processo de infecção generalizada pelo câncer de um tremendo egoísmo. Seu coração foi-se endurecendo e distanciando aceleradamente de Cristo. A sua consciência foi-se embotando. Perdida a confiança em Jesus, passou a olhá-lo com olhos cada vez mais críticos, até chegar, após sucessivas decepções, a odiar Aquele a quem tanto admirara. Finalmente veio a traição vil.
Durante todo o tempo em que a alma de Judas se ia enchendo de trevas, Jesus não deixou de estimá-lo muito e de tentar ajudá-lo. Deu-lhe muitas oportunidades de arrepender-se do seu egoísmo.
Comenta São Tomás Morus que o Senhor "não o arrojou da sua companhia. Não lhe tirou a dignidade que tinha como Apóstolo. Nem lhe tirou a bolsa, e isso apesar de ser ladrão. Admitiu-o na última Ceia com os demais Apóstolos. Não hesitou em ajoelhar-se e lavar com as suas inocentes e sacrossantas Mãos os pés sujos do traidor, símbolo da sujidade de sua mente [...] Finalmente, no instante supremo da traição, recebeu e retribuiu o beijo de Judas com serenidade e com mansidão"3.

A negação de São Pedro



— Duccio de Buonisegna (1308-11), Museu da Obra, Catedral de Siena (Itália)


A negação de São Pedro

Pedro, pelo contrário, nunca perdeu essa retidão interior. Começou a seguir Jesus num arranque abnegado de generosidade. No entanto, a sua natureza generosa e ardente era frágil, e Pedro, apesar de tantas advertências carinhosas mas claras de Cristo, preferiu ignorá-las presunçosamente. E foi essa presunção que o perdeu. O seu itinerário até a queda correu pela linha das atitudes de autosuficiência, das ‘desafinações' em relação ao espírito do Mestre, que a longo prazo apontavam para a infidelidade em situações extremas. E assim chegou à sua tríplice negação.
Pedro, tal como Judas, tinha uma visão demasiado humana da sua missão e do próprio Cristo. Não atribuía a devida importância à oração. Sem deixar de ser reto, chegou, por presunção, a tornar-se extremamente vulnerável.
As negações de Pedro chamam mais a atenção que a traição de Judas, porque, no caso deste último, é evidente que houve um lento processo de deterioração que preparou a queda ruinosa, ao passo que, no caso do primeiro, aparentemente, o tropeço chegou de repente.
Mas a verdade é que também no caso de Pedro houve um tempo de maturação da queda, um período suficientemente longo em que ele teria podido notar a aproximação do perigo e tomar as providências necessárias para afastá-lo.
Pedro poderia ter notado que, à medida que se aproximava o momento da morte de Cristo na Cruz, a perspectiva dessa morte, que Jesus já afirmara repetidas vezes ser absolutamente necessária, o vinha deixando cada vez mais perplexo e tristonho. Poderia ter notado que ia crescendo no seu coração a relutância em aceitá-la. Poderia ter reparado que essa relutância estava tornando difícil a sintonia com o Mestre, o diálogo profundo com Ele. Que desse modo se iam entorpecendo no seu coração os desejos de um seguimento incondicional de Cristo, abalando-se assim as bases da sua lealdade.
Poderia ter dado ouvidos ao Senhor quando Jesus o advertiu do perigo de sua defecção. Poderia, em suma, ter percebido que se estava afastando de Cristo, que o estava seguindo `de longe', tornando-se portanto cada vez mais fraco. Não o fez por presunção — confiava demais em si mesmo — e, por isso, chegado o momento da prova, encontrou-se sozinho e desamparado, sem a ajuda de Cristo e da sua Santíssima Mãe, com a qual poderia contar se tivesse crescido em humildade.

Arrependimento de São Pedro — Andres Sanchez Gallque (séc. XVI), Museu de Arte Colonial, Quito (Equador)
São Pedro, Judas e nós


Estamos, portanto, diante de duas modalidades de queda, ambas inquietantes.
A história de Judas adverte-nos para o perigo da falta de pureza de intenção que nasce do egoísmo. É muito comum que os nossos ideais mais elevados estejam misturados com intenções egoístas de avareza, vaidade etc.
Aconteceu com a maioria dos Apóstolos, que, embora quisessem honestamente colaborar com a instauração do Reino de Deus, tinham também pretensões menores de vaidade: quantas vezes não teve Jesus que corrigi-los por estarem discutindo sobre qual deles seria o maior, sobre postos de honra, sobre quem se sentaria à sua direita ou à sua esquerda!
Aconteceu também com Judas. Só que, nos outros Apóstolos, essas pretensões e as suas inevitáveis conseqüências más não levaram à ruína final; em Judas, sim. Porque os outros souberam combatê-las à medida que se iam manifestando, e Judas não se preocupou com
isso. Deixou-se dominar por elas e, como conseqüência, corrompeu-se.
O que é realmente perigoso é a cegueira de uma consciência deformada. Só ela pode fazer que alguém acorde um belo dia e descubra, com amarga surpresa, que perpetrou uma terrível traição, que agiu como um canalha, como Judas. Todos podemos trair.
***
Termina aqui a transcrição do opúsculo
Encerramos lembrando um comentário que o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira costumava fazer sobre a traição de Judas: se o traidor, após toda sua ignomínia, tivesse procurado Nossa Senhora para sinceramente pedir perdão, ele o teria obtido por meio dEla. São Pedro, pelo contrário, pediu perdão até o fim de seus dias, e por isso tornou-se um grande santo. Mas exatamente o que Judas não quis foi humilhar-se e pedir perdão.

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