sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Avarentos

Triste pai desencarnado compareceu na Sala de Auxílio
e rogou ao nobre instrutor que presidia costumeira reunião:
- Devotado amigo, tenho ainda na Terra dois filhos,
em plena madureza, e suplico autorização a fim
de amparar, mais seguidamente, um deles,
que me parece à beira de queda iminente.
E, ante a benévola expressão do dignatário sublime,
o requerente continuou:
- Ignorante dos princípios de causa e efeito, meu Leocádio
ajuntou milhões, fazendo-se proprietário de imensa fortuna.
É um sovina desditoso, a movimentar-se entre cofres
recheados e assentamentos de banco, preciosidades e jóias.
Coração dantes generoso, ressecou-se com o tempo.
Nele vejo agora usurário cruel...
Em casa, transformou-se em doido varrido.
Esqueceu-se de que a esposa lhe merece carinho,
de que os filhos, ainda jovens, precisam educação;
se reclamam, dá-lhes dinheiro farto para que lhe não
perturbem as reflexões aparentemente tranquilas, nas
quais se deleita em pesadelos dourados.
Não consegue mentalizar outra coisa que não seja fazendas
e terras, moedas e cadernetas bancárias.
E ao mesmo tempo que mostra prodigalidade
exagerada, ao pé da família, fora do ambiente doméstico,
não dá tostão a ninguém.
É um verdugo dos empregados que o servem,
fiscalizando panelas e armários...
Nos favores que presta, cobra tributo alto, e, nas compras que
realiza, pechincha tudo...
Em matéria de fé religiosa, aceita qualquer interpretação, desde
que ninguém lhe censure o desvairado apego à finança,
que se lhe erige agora no pensamento por ídolo irremovível.
Inquietando-se, diante do silêncio com que era observado,
rematou, súplice:
- Juiz amorável, dá-me permissão para seguir, passo a passo,
o meu pobre filho que a paixão do dinheiro transfigurou
em alienado mental!
Porque o peticionário se interrompesse, chocado pela emoção,
perguntou o mentor:
- Se te pronuncias, na condição de pai de dois filhos,
é natural que te refiras ao outro.
- O outro? disse o interessado, entremostrando larga
esperança – o outro é Levindo, caráter ilibado, irrepreensível.
Desde a mocidade, é um gênio de gabinete.
Há precisamente quarenta anos, não tem outra preocupação
que não seja estudar os filósofos e os cientistas da Humanidade.
Vive cercado de prateleiras, em que se alinham documentos
de milenária importância.
Lê Platão no Grego puro e decifra os códigos egípcios com uma
habilidade que nada tem a invejar Champollion.
Conhece as religiões com admirável senso crítico.
Responde com precisão a todas as consultas que se lhe
formulem, quanto às civilizações antigas e novas...
Diante da pausa que surgiu, espontânea, o emissário
da Esfera Superior indagou, presto:
- Que faz ela com tamanho cabedal de cultura?
- Meu filho basta a si próprio – informou o genitor,
entre orgulhoso e tranqüilo.
E o ajuste continuou:
- É professor com muitos discípulos?
- Não se trata de um professor, mas de um sábio.
- Não ensina, porém, o que sabe, nem mesmo alfabetiza
esse ou aquele irmão necessitado de escola?
- Ele não necessita trabalhar para o próprio sustento.
- Mesmo assim, não se dedica, por espírito de serviço,
a colaborar nas atividades de alguma instituição de beneficência?
- Sinceramente, não.
Guarda a índole de quem é devotado
à paz de si mesmo e não suporta as complicações do povo.
- Não adota crianças, de modo a plasmar-lhes os
sentimentos pelos padrões de vida superior?
- Não tolera a ingratidão e teme perfilhar hoje meninos
que amanhã lhe furtem a segurança...
- Não escreve nem fala em público para instruir
os semelhantes e consolá-los?
- De maneira nenhuma. Não se anima a descer da altura
intelectual em que vive para rentear com aqueles que,
decerto, o levariam ao desprimor pela discussão...
Vive só, figurando-se-me um astro luminescente, mas
absolutamente incompreendido na Terra...
O representante da excelsa justiça meditou por alguns
momentos e, como quem não podia perder tempo, resumiu
o conselho, asseverando:
- Reconsidera a solicitação, meu amigo.
Ambos os teus filhos são avarentos,
necessitados do Socorro Divino; entretanto, o usurário
escravizado ao ouro surpreende no próprio dinheiro
um excitante à provação e ao trabalho.
Ainda que deseje repousar nos teres e haveres que retém,
não encontrará, na abastança material, senão motivo
a incessantes suplícios.
Conhecer á mais cedo a verdade, por viver em contato
mais direto com a hipocrisia.
Estará em luta constante para segurar a fortuna que amontoou,
sofrendo aflição e desconfiança entre os melhores amigos,
e, tão logo desencarne, experimentará desilusões terríveis,
seguindo, agoniando, as ambições de muitos dos
familiares que lhe disputarão os despojos nos tribunais,
à feição de milhafres sobre o corpo da presa.
Desencantado e sofredor, ele próprio suplicará a reencarnação,
apressadamente, a fim de olvidar os antigos enganos
e reparar os próprios erros.
Mas o teu filho supostamente sábio é sovina da alma, ameaçado
de solidão e desequilíbrio, por muitos séculos, de vez
que atravessa os dias sem proveito para ninguém.
Insulado no orgulho e na vaidade de saber e fugindo à felicidade
e a obrigação de servir, lembra ele o poço de águas ricas
e cristalinas que, por isolado e inútil, acaba verminado de
podridão em si mesmo...
E, ante o pai assombrado, o juiz terminou:
- Ampara o teu filho atormentado, na Terra, pela usura da posse;
no entanto, não te esqueças de que a avareza da inteligência
que enlouquece o outro é muito pior.

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