quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

O HOMEM E O BOI

Um anjo de longínquo sistema, interessado em conhecer os variados
aspectos e graus da razão na inteligência Universal, pousou num
campo terrestre e, surpreso ante a paisagem, aí encontrou um homem e
um boi. Admirou as flores silvestres, fixou os horizontes coloridos de
sol e rejubilou-se com a passagem do vento brando, rendendo graças ao
Supremo Senhor. Como não dispunha, todavia, de mais larga parcela de
tempo, passou à observação direta dos seres que povoavam o solo,
aferindo o progresso do entendimento no orbe que visitava. Examinou as
pupilas do homem e descobriu a inquietação da maldade. Sondou os olhos
do boi e encontrou calma e paz. Usando o critério que lhe era
particular, conclui de si para consigo que o boi era superior ao
homem. Consolidou a impressão quando, para experimentar, pediu
mentalmente aos dois trabalhassem em silêncio. O animal respondeu com
perfeição, movimentando-se, humilde, mas o companheiro bípede gritou,
espetacularmente, proferindo nomes feios que fariam corar uma pedra.
Um tanto alarmado, o anjo recomendou paciência. O educado bisneto da
selva continuou trabalhando, imperturbável e tolerante. Todavia, o
irrequieto descendente de Adão estalou um chicote, ferindo as ancas do
colaborador de quatro patas. Acabrunhado agora, diante da cena triste,
o sublime embaixador pediu atitudes de sacrifício. O servo bovino
obedeceu, sem qualquer relutância, revelando indiscutível interesse em
ser útil, distraído das próprias chagas. O administrador humano,
contudo, redobrou a crueldade, recorrendo ao ferrão para dilacerar
lhe, ainda mais, a carne sanguinolenta... Sensibilizadíssimo, o fiscal
celeste anotou o que supôs conveniente aos fins que o traziam e
afastou-se, preocupado. Não atravessara grande distância e encontrou
uma vaca em laço forte, com outro homem a ordenhá-la. Sob impressão
indefinível, emitiu apelos à renúncia. A mãe bovina atendeu com
resignação heroica, prosseguindo firme na posição de quem sabia
sacrificar-se, mas o ordenhador, antes que o emissário de cima os
analisasse, de perto, porque certa mosca lhe fustigava o nariz,
esbofeteou o úbere da vaca, desabafando-se. O funcionário dos altos
céus, compadecido, acariciou a vítima que se movimentou alguns
centímetros, agradavelmente sensibilizada. O tratador, porém, berrou
desvairado, caluniando-a... - Queres escoicear-me, não é? - gritou,
diabólico. Ergueu-se lesto, deu alguns passos, sacou de bengala
rústica e esbordoou-lhe os chifres. Emocionado, o anjo vivificou as
energias da vaca, aplicando o seu magnetismo divino, rogou para ela as
bênçãos do Altíssimo, empregou forças de coação no agressor,
conferindo-lhe salutar dor de cabeça, efetuou os registros que
desejava e retirou-se. Prestes a desferir voo, firmamento a fora,
encontrou um gênio sublime da hierarquia terrena. Cumprimentaram-se,
fraternos, e o fiscal divino comentou a beleza da paisagem. Não
ocultou, porém, a surpresa de que se possuía. Relacionou os objetivos
que o obrigaram a parar alguns minutos na Terra e rematou para o irmão
na pureza e na virtude: - Estou satisfeito com a elevação sentimental
das criaturas superiores do Planeta. Cultivam a generosidade,
renunciam no momento oportuno, trabalham sem lamentações e, sobretudo,
auxiliam, com invulgar serenidade, os inferiores. O anjo da ordem
terrestre silenciou, espantado por ouvir tão rasgado elogio aos
homens. O outro, no entanto, prosseguiu: - Tive ocasião de presenciar
comovedores testemunhos. Pesa-me confessá-lo, porém: não posso
concordar com a posição dos seres mais nobres da terra, que se
movimentam ainda sobre quatro pés, quando certo animal feroz, que os
acompanha, agressivo, já detém a leveza do bípede. Naturalmente, sabe
o Altíssimo o motivo pelo qual individualidades tão distintas aqui se
encontram, unidas para a evolução em comum... Tenho, contudo, o
propósito de apresentar um relatório minucioso às autoridades divinas,
a fim de modificarmos o quadro reinante. Assinalando-lhe os conceitos,
o companheiro solicitou explicações mais claras. O anjo estrangeiro
convidou-o a verificações diretas. O protetor da Terra, desapontado,
esclareceu, por sua vez, ser diversa a situação: o bípede é na crosta
Planetária o Rei da inteligência, guardando consigo a láurea da
compreensão, sendo o boi simples candidato ao raciocínio,
absolutamente entregue ao livre-arbítrio do controlador do solo.
Acentuou que, não obstante operoso e humilde, o cooperador bovino
gastava a existência servindo para o bem, e acabava dando os costados
no matadouro, para que os homens lhe comessem as vísceras... O
forasteiro dos céus mais altos, sem dissimular o assombro, considerou:
- Então, o problema é muito pior... Pensou, pensou e aduziu:
- Jamais encontrei um planeta onde a razão estivesse tão degradada.
Despediu-se do colega, preparou o afastamento definitivo sem mais
delonga e concluiu: - Apresentarei relatório diferente. Mas ainda não
se sabe se o anjo foi pedir medidas ao Trono Eterno para que os bois
levantem as patas dianteiras, de modo a copiarem o passo de um herói
humano, ou foi rogar providências aos Poderes Celestiais a fim de que
os homens desçam as mãos e andem de quatro, à maneira dos bois...

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