terça-feira, 6 de novembro de 2007

Não se contente com as sobras

A primeira coisa foi culpar-se por não ter ouvido o despertador. Mas como, se acordava sempre antes do danado tocar. Seu relógio biológico tornara-se de tal forma pontual, que ela sequer se preocupava com a possibilidade de perder a hora. Virou-se para o lado, o marido roncava. Correu ao quarto das crianças - nem tão crianças assim -, e constatou que os anjinhos dormiam.
Seria um sábado? Não era. Plena quinta-feira, sol alto, e a família a sono solto.
- O dia será um desastre! Mortificou-se. Alguma coisa está errada comigo, para eu dormir tanto.

Procuraria um médico, compraria um despertador mais potente. Isto amanhã, porque de imediato tinha um grande problema a resolver e estava apavorada: acordar o marido e os filhos. Ficariam irritadíssimos com ela. E se o marido
perdesse o emprego? E se as crianças tivessem uma prova surpresa? Minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa.

Fora sempre assim. Bastava abrir os olhos e lá estava o rol de solicitações.
Onde estaria aquela gravata, gritava o marido, enquanto se barbeava. E o estojo que o filho mais velho havia deixado na sala depois da lição e agora não conseguia encontrar? Enquanto procurava, o mais novo reclamava do tênis,
queria mesmo era aquele que já se encontrava na lavanderia. E assim Lívia tocava o seu dia. Mesmo quando eles não estavam, ocupava-se em manter tudo pronto para não desagradá-los.

Uma das coisas boas da vida é cuidar daqueles a quem queremos bem; fazer o prato que mais apreciam; vê-los sair limpinhos e cheirosos; ajudá-los a cumprir compromissos, até acordando-os de manhã, se for preciso. O que nos
chama atenção, no entanto, é o desespero de Lívia com a suposta ameaça ao bem-estar da família.

Viver sob a tensão dessa ameaça significa que alguma coisa vai mal.
Poderíamos pensar no quanto ela se coloca como super protetora, tirando, inclusive, a possibilidade de cada um se responsabilizar pelo que é seu; ou o quanto estafante é correr o dia todo atrás da ordem, para privilegiar o outro com a desordem. "Ele pode desarrumar, que depois eu arrumo". Mas o ponto crucial da nossa reflexão, aqui, diz respeito à perda do prazer nos pequenos gestos, que ao invés de saírem com afeto, como gostaríamos, tornam-se um peso, um sacrifício.

Não é possível nos contentarmos apenas com as sobras do tempo que dedicamos aos outros, quando sobra. É importante mesclarmos nossas obrigações cotidianas com momentos só nossos, de deleite mesmo. Tempo para se esquecer no banho, sentindo o cheiro do sabonete e a delícia da água escorrendo pelo corpo; tempo para ler ou reler aquele livro, que seja uma página por dia; tempo para cuidar do vasinho de flor, ou do imenso jardim; tempo para olhar estrelas, ou apreciar a chuva pela janela; tempo para escolher e ver o filme com seu ator predileto. Tempo para resgatar o prazer nas pequenas coisas.
Tempo para encontrar aquilo capaz de recolocar no compasso a respiração.

Assim refeitos, é possível até acharmos graça da desordem e dividi-la com o outro.

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