segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim
todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões
do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é,
o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente
por gente,
Para uma rua inacessível
a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa,
desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo
das pedras e dos seres
Com a morte a pôr umidade
nas paredes e cabelos brancos
nos homens.
Com o Destino a conduzir
a carroça de tudo pela
estrada de nada.
Estou hoje vencido,
como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido,
como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida,
tornando-se esta casa
e este lado da rua
A fileira de carruagens
de um comboio,
e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela
dos meus nervos
e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo,
como quem pensou
e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido
entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua,
como coisa real por fora,
E à sensação de que
tudo é sonho,
como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum,
talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela
das traseiras da casa.
Fui até ao campo
com grandes propósitos.
Mas lá encontrei
só ervas e árvores,
E quando havia gente
era igual à outra.
Saio da janela,
sento-me numa cadeira.
Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei,
eu que não sei o que sou?
Ser o que penso?
Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa
que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem
em sonho gênios como eu ,
E a história não marcará,
quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume
de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos
com tantas certezas!
Eu, que não tenho
nenhuma certeza,
sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas
e não-mansardas do mundo.
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando.
Quantas aspirações
altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente
altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real
nem acharão ouvidos de gente?
0 mundo é para quem nasce
para o conquistar
E não para quem sonha
que pode conquistá-lo,
ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais
que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético
mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo
que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre,
o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que
não nasceu para isso;
Serei sempre só
o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou
que lhe abrissem a porta ao pé
de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus
num paço tapado.
Crer em mim?
Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza
sobre a cabeça ardente
0 seu sol, a sua chuva,
o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier,
ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo
antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa
e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar
e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica
no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam
mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates
com a mesma verdade
com que comes!
Mas eu penso e,
ao tirar o papel de prata,
que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão,
como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura
do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo
um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol,
pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes
e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua
que fosse viva,
Ou patrícia romana,
impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores,
gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito,
decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo
dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno
- não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for,
que sejas,
se pode inspirar que inspire!
Meu coração
é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos
invocam espíritos invoco
A mim mesmo
e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua
com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios,
vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos
que se cruzam,
Vejo os cães
que também existem,
E tudo isto me pesa
como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro,
como tudo.)
Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo
que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos
e as chagas e a mentira,
E penso:
talvez nunca vivesses nem estudasses
nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade
de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas,
como um lagarto
a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém
do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim
não o fiz.
0 dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo
por quem não era e não desmenti,
e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado,
já não sabia vestir o dominó
que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara
e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história
para provar que sou sublime.

Essência musical
dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te
como coisa que eu fizesse
E não ficasse sempre defronte da
Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência
de estar existindo,
Como um tapete
em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram
e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria
chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto
da cabeça mal voltada
E com o desconforto
da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta,
eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também,
e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua
onde esteve a tabuleta,
E a língua em que
foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante
em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas
qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos
e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa
defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil
como a outra ,
Sempre o impossível
tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo
tão certo como o sono de mistério
da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa
ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria
(para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente
em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos
em que digo o contrário.

Acendo um cigarro
ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação
de todos os pensamentos.
Sigo o fumo
como uma rota própria,
E gozo, num momento
sensitivo e competente,
A libertação de todas
as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto.

Depois deito-me
para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder,
continuarei fumando.

(Se eu casasse com a
filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira.
Vou á janela.

0 homem saiu da Tabacaria
(metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o;
é o Esteves sem metafísica.
(0 Dono da Tabacaria
chegou á porta.)
Como por um instinto divino o Esteves
voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe
Adeus ó Esteves!,
e o universo
Reconstruiu-se-me
sem ideal nem esperança,
e o dono da tabacaria sorriu.

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